quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Paranhos há 50 anos

O post anterior despertou-me as memórias e resolvi deixar um testemunho de como se vivia em Paranhos, Porto, pelo menos no polígono cemitério, Campo Lindo, Arca d' Água, Hospital de S. João, há mais de 50 anos.

Eu vivia na Rua Dionísio dos Santos Silva, no largo a que se chamava informalmente de Largo da Bouça. Não sei as razões de tal toponímia informal, mas existia a Viela da Bouça e julgo que estivesse relacionado com a bouça que existia entre a Rua da Asprela e as traseiras das casas do largo, onde hoje existe um bairro social. Frequentava a escola primária 35 no edifício da junta, que só ocupava o bloco central, sendo do lado de cima da rua a escola masculina e do lado de baixo a escola feminina. A sala da minha 4.ª classe (professor Joaquim Evangelista) era exactamente onde hoje é a secretaria da Junta. Em frente da escola havia uma fábrica que tinha dois corvos como guardas.

A vivência dessa área da cidade era mais aparentada com as suas origens maiatas que com a restante cidade. A minha rua era praticamente uma aldeia, com relações familiares entre muitas das pessoas, sendo a minha família uma das excepções. Só lá viviam desde 1945. Era uma zona de lavradores, onde circulavam pachorrentos carros de bois. Havia ainda artífices como os "pica-limas", que repicavam as limas usadas. Hoje nem se pensa nessa hipótese... Pegado à minha casa havia uma fábrica, primeiro tinturaria, depois de malhas. O largo estava ainda provido de duas mercearias-taberna com vasta freguesia, a do sr. Pereira (ex-Azeveda) e a do sr. Avelino.

A maioria das casas não tinha água canalizada nem saneamento. Iam buscar água ao fontanário, em frente da minha casa, e os esgotos iam para fossas. A casa onde eu vivia, mais urbana, tinha água canalizada e esgotos para uma fossa, que alguém clandestinamente abriu para as águas pluviais e rio da Manga, mas nem pensar em água quente. Nas festas populares, do Sto. António ao S. Pedro, havia bailarico no largo e algumas sessões de pancadaria com as bebedeiras correspondentes.

Quanto a profissões havia de tudo. Lavradores, picheleiros, electricistas, trolhas, polícias, oficiais militares, um artista de molduras, tipógrafo, enfermeiro, viajante, etc.

Um profissional que me ficou na memória foi o Tono Vareiro. Como a alcunha indica, vendia peixe com aquelas canastras enfiadas num pau, que devem ter sido herdadas dos chineses. À noite, andava com uma escada às costas a roubar roupa estendida nos quintais. Não roubava nada lá na rua. Como ainda não tinha aparecido a teoria da "sociedade de sucesso" do prof. Cavaco, até os ladrões tinham ética!

Hoje pergunto-me se o Tono seria mesmo um ladrão e raciocino: um tipo que rouba cuecas rotas, lençóis remendados e meias ponteadas (era o que havia!) não tem mesmo classe nenhuma, logo é um ladrão. Se roubasse milhões e os colocasse em off-shores seria um senhor de classe e até se arriscava a ser condecorado. O problema é que nesse tempo não havia off-shores...

Sempre vi o edifício do Hospital da Cidade (S. João), embora só abrisse em 1958. Por essa altura aprendi a andar de bicicleta nas obras de abertura da Rua Dr. António Bernardino de Almeida, a que chamávamos "avenida". Lembra-me que o dono daqueles terrenos, onde hoje corre essa rua e estão o ISEP e o bairro da Agra do Amial, se enforcou por não concordar com as condições da expropriação camarária. Terá sido por 1956. A minha rua acabava na Rua de S. Tomé, no Bairro da Azenha.

Quando o hospital abriu, era um "top" de modernidade. Tinha uma travesseirinha com rádio para cada cama, ligado a um sistema central e um sistema de procura de pessoas via rádio. Os médicos e enfermeiros-chefes tinham um aparelho semelhante a uma caneta que apitava quando houvesse necessidade de o contactarem. Dirigia-se ao telefone mais próximo e era informado pela central do que se passava. Um prodígio tecnológico para a época!

Passados 11 anos fui para lá trabalhar. As travesseirinhas já não tinham os rádios e do sistema de chamada só existiam as antenas em volta do edifício. O Estado nunca foi bom a manter o seu património.

Aqui fica o testemunho do lugar onde passei os meus primeiros 25 anos e onde ainda volto com saudade. Se alguém quiser dar mais achegas, agradeço.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

3 de Fevereiro de 1927

Neste post não se pretende historiar a revolta de 3 de Fevereiro de 1927, mas somente registar a visão de quem viveu os acontecimentos por dentro e involuntariamente. O resto é para os historiadores.

Nessa noite o cabo Faria chefiava a guarda ao Hospital Militar do Porto. Fazia 1 ano que tinha assentado praça e tinha-lhe sido fácil ascender àquele posto por ter habilitações literárias razoavelmente superiores às dos seus camaradas soldados. Tinha o 4.º ano de Comércio do Colégio Almeida Garrett. Recebeu ordens para regressar imediatamente com os seus homens ao quartel do regimento de Infantaria 18, a que sempre pertencera, ali na Praça da República.

Quando chegou ao quartel, distribuíam-se munições a toda a gente e, como tinha a especialidade de apontador da metralhadora Lewis, foi-lhe dada ordem para avançar com uma força que ia para o Jardim da Moreda, na rua Santos Pousada.

Entretanto foi apreendida uma moto com side-car e, não havendo condutor, foi perguntado quem estava habilitado a conduzir aquilo. Como tinha carta de moto, o cabo Faria deixou a metralhadora e foi fazer aquilo que era a sua diversão preferida: andar de moto. Seguiu outro com a metralhadora.

Recebeu ordens para conduzir um oficial e lá foi ele para o Quartel General, ali junto à Batalha, onde já se começavam a cavar trincheiras debaixo do fogo da Artilharia da Serra do Pilar.

Da Batalha seguiu com o oficial para Metralhadoras 3, ali em frente ao palácio dos Carrancas, hoje Museu Soares dos Reis, onde lhe comunicaram que estava preso e teria de trabalhar para os novos chefes, distribuindo aguardente pelas trincheiras.

Destino de soldado! Já era a segunda vez que lhe acontecia mudar de campo nestas coisas das revoluções. A primeira tinha sido poucos meses antes, em 28 de Maio de 1926, quando tinha ido com o seu regimento para Norte, a fim de combater as tropas revoltosas de Gomes da Costa e, depois de ir a pé até Famalicão, voltar ao Porto integrado nas tropas que ia combater. O seu regimento tinha mudado de chefe. Como continuava a andar de moto, tudo bem. O resto era lá com os políticos...

Correu a notícia de que o apontador da metralhadora na rua de Santos Pousada tinha morrido. A palmeira ali existente, ainda hoje mostra as marcas das balas. Alguém que não tinha sabido da história da moto foi dizer à mãe do cabo Faria da sua morte. A senhora e a filha vestiram o correspondente luto.
Continuou com a distribuição do suplemento de aquecimento naquelas noites frias pelas trincheiras instaladas, nomeadamente na Praça da Batalha, onde os revoltosos instalaram o seu comando no teatro S. João.
O frio era muito e os silvos das munições e as explosões eram um ruído constante. Cadáveres por toda a baixa. No cruzamento das ruas de Antero de Quental e Constituição o residente no andar por cima da farmácia Maciel veio à varanda ver a revolução. Uma granada de artilharia arrancou-lhe a cabeça. Um esquadrão de Cavalaria 7, de Aveiro, entrou a galope na ponte D. Luís, aos vivas à revolução, pensando enganar os revoltosos entrincheirados à saída da ponte. Foram dizimados à metralhadora. Cavalos feridos e espavoridos espalharam-se pelas ruas circundantes.
O motociclista, numa vaga, lá conseguiu visitar a mãe na Rua da Alegria, onde desfez o equívoco da sua morte.
No dia 7 deu-se a rendição dos revoltosos e o cabo voltou ao seu regimento, onde foi detido (já ia sendo hábito!) e acusado de colaborar com os revoltosos, arriscando-se a ser deportado com os outros. Valeu-lhe a honestidade do oficial, também preso, que declarou ter estado sempre às ordens dele e ser ele o responsável. Nesse tempo, os chefes sabiam sê-lo e assumiam as suas responsabilidades!
Tudo isto me foi contado diversas vezes pelo cabo Faria, meu pai, que fez 49 anos de serviço militar efectivo, para demonstrar a monstruosidade de uma guerra, muito mais de uma guerra civil. É em memória dele que aqui fica o testemunho.