quinta-feira, 26 de julho de 2007

Coisas da memória...

Desde há uns dias que, não sei porquê, não me sai da cabeça a memória de uns acontecimentos passados em 1973. Parece que pedem que os publique. Cá vai!
Na altura, chefiava eu as Oficinas de Quelimane dos Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM), com cerca de 200 trabalhadores, quando chega a notícia da visita de alguém muito importante, não sei já se o governador se o ministro do Ultramar.
Claro que se organizou logo uma manifestação espontânea, com comboios vindos do interior com milhares de pessoas ávidas de conhecer e vitoriar tão ilustre visitante, devidament enquadrados pelos Chefes de Posto e respectivos cipaios. Houve também ordem de fechar as oficinas nesse dia.
Acontece que a maioria dos trabalhadores eram eventuais pagos por obras, isto é, eram pagos pela imputação à obra em que trabalhassem e só do tempo em que o fizessem.
Como havia um encerramento compulsivo das oficinas, pôs-se-me o problema de como actuar. Não podia pagar-lhes pelas obras em que não estavam a trabalhar porque isso iria ultrapassar os orçamentos iniciais. Também não era justo não lhes pagar, pois o encerramento era compulsivo e não tinham culpa da visita do sr. importante. Por outro lado, se não lhes pagasse para vitoriarem o sr. importante, podia ter problemas com a polícia política.
Como já sabia que, nestas coisas, quem se lixa é o mexilhão e que as ordens orais são repentinamente esquecidas, solicitei instruções por escrito.
Passados dias tinha 2 agentes da PIDE, desculpem, DGS, a convidar-me para beber uma cerveja.
Esta confusão da designação vem de que a PIDE tinha acabado há pouco tempo, sendo substituída pela DGS. Isto é, mudaram o rótulo à garrafa, mas o conteúdo era o mesmo. Parece que a culpa era dos madeirenses. É que, com a maneira peculiar de pronunciarem os "ii", o nome da prestimosa organização prestava-se a dichotes jocosos nos recônditos mais escondidos das casas. Nesse tempo, ainda não havia este excesso de liberalismo de também se poder brincar com estas coisas nos cantinhos dos cafés!
Lá tive de beber uma Manica média com eles e explicar-lhes a situação, que pareceram compreender.
Passados alguns meses, tive a resposta oficial de que não era oportuno dar instruções sobre o assunto.
Mas por que será que, nos últimos dias, não me sai isto da memória? Deve ser da idade....

Portuguesismos - 2

Antes de mais, quero deixar muito claro que a ideia de portuguesismo presente nestes meus escritos nada tem a ver com o patrioteirismo barato das bandeiras do sr. Scolari ou das cantadelas do Hino do sr. Paulo Portas, e muito menos com o pseudo-nacionalismo racista duns palermas que para aí andam a fazer a barba na cabeça.
Trata-se, antes, do sentido, por vezes mítico, de pertença a um povo feito de muitos povos e criador de alguns outros.
Em 1993, o Grupo de Danças e Cantares do Clube de Macau, de que eu fazia parte, deslocou-se a Singapura para participar na Shinghai Parade (Desfile etnográfico internacional por altura do Ano Novo chinês), levando a incumbência do governador de Macau de contactar uma associação chamada Eurasian Association, à qual se entregariam cassetes áudio e vídeo de música portuguesa.
Chegados à sede da associação, num velho aeroporto desactivado, fomos recebidos como velhos familiares. É que a Eurasian Association associa descendentes dos portugueses que andaram naquelas paragens há 300 anos, e qua ainda se assumem como portugueses, embora juridicamente não o possam ser.
Aquela gente, bem colocada nos negócios e com lugar no Conselho Social do Governo, ainda fala um dialecto português, o Papiar Kristang, misto do português o sec. XVII e do malaio, que os velhos ensinam semanalmente aos jovens. Quem tenha lido o português antigo (Fernão Lopes, por exemplo) consegue manter uma conversa com eles.
Também têm um grupinho folclórico mais ou menos português, mas com particularidades locais - os rapazes e as raparigas não dançam juntos - e que acaba sempre as danças, imitação das nossas, com "olé!".
Na sede da associação têm quadros com as árvores genealógicas das diversas famílias, sempre encimadas pelo português do sec. XVII.
Fiquei com o ego do tamanho de um estádio. Eu pertencia ao povo a que aquela gente prestava tais homenagens!
Quando disseram que a razão de levarmos as cassetes era que, andando há mais de 10 anos a pedir uma cassete de música portuguesa pelas embaixadas e consulados de Portugal em toda a região e mesmo em cartas para o governo em Lisboa, sem qualquer resposta, tiveram então a ideia de pedir ao bispo de Macau, chinês, amigo deles, para intervir junto do governador, fiquei envergonhadíssimo. Se tivesse um buraco no chão, escondia-me lá.
Então eu pertencia ao povo que tinha eleito para governos os imbecis que não tinham arranjado uns míseros 700 paus para mandarem uma cassete áquela gente tão generosa?!
Se fosse para comprar um porta-aviões certamente tinham aparecido uns trocos!!
Entregámos as cassetes e cantámos e dançámos com eles numa almoçarada de comida também luso-malaia de estalo.
"Digam lá qual é mais excelente...."